quinta-feira, novembro 14

Virtualidades

O mundo virtual se torna cada vez mais real e eloquente em nossas vidas. Difícil algo em normal cotidiano no qual não se faz presente. Não lembro a última vez que enviei carta escrita à mão pelos Correios. Um de meus maiores prazeres era escrever longas cartas. Usava caneta Parker 51, herança de Vô. Tinteiro em forma de losango durava pouco. O cheiro da tinta, lembrança olfativa, volta em vez, o sinto em algum lugar. Agora, simplesmente abro uma folha branca virtual e dedilho cartas, ofícios, bilhetes, contos, poemas e prosas. Passei antes, é claro, pela boa e velha Remington, não a arma que, apesar de que, bem poderia ser considerada como tal. Pena e espada, duas poderosas formas de ferir, atacar, mas principalmente defender. Confesso, fui aluno relapso em aulas de datilografia e nunca passei do a, s, d, f, g – ç, l, k, j, h. Me viro com dois dedos, os indicadores. Às vezes, peço ajuda a um polegar ou ao médio, vulgo maior de todos, para os íntimos e as crianças. Erro todo tempo, exatamente a facilidade de usar um backspace e corrigir o que nos torna preguiçosos e desatentos. Lembro quando surgiu uma fitinha branca que colocávamos sobre a letra errada na máquina mecânica e, depois na elétrica, apertávamos a tecla, cobrindo o que queríamos esconder. Aí surgiu o Errorex.

Pincelavam-se os enganos. Os ofícios e memorandos mais pareciam filhotes de paca, tamanha a quantidade de pintas brancas saídas das mãos de datilógrafos ligeiros, mas fracos na língua-pátria. Só conheci um exímio e veloz mestre dos teclados e do domínio da gramática ao mesmo tempo. Tio Fábio Borges, escrivão do crime. Fera como poucos. Não creio que ele se acostumaria com a fragilidade dos teclados de plástico dos computadores de hoje. Saudade gigante dele. De seu bom humor, de seu coração de ouro, sempre preocupado com todos. Não se fazem mais tios Fábios como antigamente. A essas alturas, ele deve estar a reorganizar em alta velocidade os arquivos de São Pedro, colocando ordem na casa celestial. Pouco duvido que esteja empunhando sua velha companheira de tantos anos no Fórum, uma Olivetti Línea. Seu veloz dedilhar pode ser ouvido em dias de chuva, basta por atenção. Tantos recursos, novas tecnologias. Mas por mais incrível que pareça alguns destes, ao invés de ajudar a vida do cidadão, parecem tormento.

Quer um exemplo? Aquelas famigeradas letrinhas e números que temos que digitar para provar que somos seres viventes e não robôs alienígenas invasores. Sério, conte, você consegue mesmo ler com tranquilidade aquele emaranhado de garranchos onde um “R” misturado a um “N” mais parece hieróglifo? Letra “L” se colada a um “G” não tem decifrador de códigos secretos que a desvende. E, para piorar, alguns sites, depois de uma hora de tentativas, quando finalmente você consegue enviar, apresentam mensagem bem sacana: “acho que você já falou sobre isso”. Outros, em artimanha, bloqueiam qualquer envio após três tentativas erradas. Deveria haver outra forma de resolver isso. Tantas mentes brilhantes por aí. Se o pessoal do Obama desse com um reCAPTCHA, palavra esquisita em si mesma, não haveria espionagem mundial. Os caras iriam se suicidar de desgosto. Acho que, muito em breve, desenferrujo minha Parker 51 e compro pote “Super Quink” em formato de doce de leite de venda. Passarei a retomar os manuscritos e o lamber de selos. Sofre-se menos.





Publicado em Jornal Correio em 14/11/2013
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