quinta-feira, outubro 24

Escorpião

Longos 30 anos de experiência e quase nada sei do bicho. Sua inacreditável capacidade de adaptação aos mais hostis e estranhos ambientes torna-o uma obra-prima da evolução. Algumas espécies, nem se dão ao luxo de procurarem par. Não carece namoro, nem acasalamento. Passou da adolescência, chegou à idade adulta e pronto: do nada, ficam prenhas e parem montes de filhotes, duas, três vezes ao ano.

Em hipotético cálculo matemático: um único escorpião que fez de sua reprodução a partenogênese pode gerar em longeva vida aracnídea quase 7 milhões de descendentes se nenhum morrer ao longo dos anos. Hipotético, repito: alívio nosso. Com eles até o pescoço, caso feito procriador se realizasse à risca, seríamos forçados a viver nos polos, únicos lugares onde não são encontrados. Nesse mundão de tão variados ambientes. Assim, só teríamos que temer ursos polares e nossa fértil e fantasiosa imaginação, mestre em criar fobias, paranoias e divindades protetoras. Das frescas matas a tórridos desertos, do ponto mais alto de montanhas gigantescas, pilares da terrena celestial abóbada, a profundas fendas e cavernas, esbarraríamos com danado. O gênero humano estaria fadado a desaparecer com os Leões das cavernas e Quaggas.

Mas nem por isso nos dão paz. Corrijo. De tanto importuná-los com nossas mazelas de criaturas (des)humanas, os obrigamos, por total falta de opção, a buscar refúgio como sinal de vingança, exatamente junto a nossas moradas. Como animais de estimação os tratamos. Com carinho, fornecemos-lhes em abundância: alimento, abrigos seguros e água em profusão, para que se banqueteiem e saciem sua voraz necessidade por umidade.

Em velocidade hipersônica, bem acima de Mach 3 passaram-se 30 anos e, a cada dia, tenho surpresas com escorpiões. Em 2007, tive a honra de ser convidado pelo Ministério da Saúde (MS) a participar da elaboração de um manual, cujo objetivo era normatizar as condutas no Brasil de manejo desse bicho que a tantos assusta e a muitos mata. O fruto de esforço de um grupo foi lançado em 2009.

Desde então, sempre a convite do MS, passamos a girar mundo, capacitando Estados. Incontáveis encontros com profissionais de saúde e muita prática de campo. Municípios também solicitam nossa ajuda e, sempre que possível, atendemos, pois salvar vidas é nossa missão maior.

Embrutecidos com relatos sobre acidentes com esses bichos, achei que tinha sentido tudo nesta vida. Ledo engano. Em nossa última expedição de captura, após treinamento, em fazenda no interior de Goiás, ouvimos relato de uma avó, cujo netinho havia morrido vítima de ferroada de escorpião. Com riqueza de detalhes impressionantes, essa senhora nos narrou minuto a minuto sua via crucis, desde a pequena localidade até o fatal desfecho do acidente, onde encontrou não recurso, mas indiferença e maltrato por parte de quem deveria tratar, amparar e consolar.

Uma pequena plateia de profissionais calejados com lida de situações de risco, sempre fuçando onde não deve à cata de bichos estranhos e aprendizado, permaneceu imóvel e silenciosa durante todo desabafo de dor. Passarinhos cantavam no entorno. A varanda, o chão batido e o fogão à lenha: cenário. Todos nós, alguns copiosamente, outros disfarçadamente, choramos com alma e lágrimas.
Trinta anos, pouco sei do proceder dos escorpiões. Toda uma vida e nada sei do comportamento humano. Alguns em especial.















Publicado em Jornal Correio em 24/10/2013

terça-feira, outubro 22