segunda-feira, dezembro 28

Ano novo?



E mais um ano se vai em fumaça. Sei que não temos muita coisa para comemorar, pois o mundo está de cabeça para baixo. As mazelas comportamentais, o fanatismo religioso, as crises, a ganância, a vaidade e outras tantas bruxas e tragédias, reinaram em 2015. Muita zica para poucos dias. Ano digno de ser esquecido. Lúgubre começo de conversa para uma crônica de quase fim de ano. Certo, não foi bom mesmo, mas será que foi de todo ruim? Pensemos. Se estamos escrevendo ou lendo estas mal traçadas linhas já é um bom sinal – sobrevivemos. Atravessamos águas turbulentas, ondas de metros, tempestade e vendavais. Mas, do ponto mais alto de mastro de nossa frágil nau, quase sem rumo, alguém, um anjo talvez, gritou a plenos pulmões: Terra à vista!

Será? Entreolhamo-nos céticos. Terra à vista! A voz se fez ouvir novamente. Teimosos, sorrimos. Timidamente, é verdade, mas logo ali já se avistava a terra firme de um tempo novo. Raça resiliente essa nossa. A evolução assim o provou. Nascemos humanóides, quase símios, todos descendentes de Lucy a nossa Eva. Esta, “uma mocinha de 20 anos, 1,20m de altura, provavelmente morta por um crocodilo e que passou cerca de 3,2 milhões de anos sob as areias da Etiópia até ser descoberta em 1974” (mundoestranho.abril.com.br). Enfrentamos todo tipo de provação que a evolução das espécies impõe às criaturas. E olha só, chegamos até aqui. Se para melhor ou para pior não sei bem, mas chegamos. Não será um aninho, um átomo de tempo, que vai nos colocar em desespero. Há esperança.

Derrotas pessoais, amores perdidos, amizades rompidas. Tristezas. Tapetes puxados, nada disso pode nos derrubar. Um ano-novo é como uma porta que abre para o vazio. Cabe a nós preenchermos cada pedacinho dele com o que de melhor pudermos oferecer. Plante árvores, ouça passarinhos, sinta o vento. Ria de si mesmo, cumprimente e sorria para as pessoas. Aprendi, com meu filho João, algo que me fez outro. Não fale mal de ninguém, cada um tem sua sina e caminho. Se não puder ajudar, não atrapalhe. Seja gentil.
Sempre fui muito otimista, até com fome e bolso vazio. Cito mais uma vez o enigmático personagem do magnífico iluminista Voltaire. Sou uma espécie de dr. Panglóss melhorado, pois a sobrancelha ainda levanta para certos atos e “desatos”.

“Tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”. Seguremos o bridão, toquemos a encarar os desafios de se sentir vivo. O ano de 2016 pode ser melhor ou pior do que este que se vai, como se dele quiséssemos guardar poucas lembranças. Depende muito mais de cada um de nós.

Como bom atleticano e devoto de São Jorge, abro o peito e solto o grito: — Eu acredito!

Tomo a liberdade de usar uma máxima que, desde sempre, conduz minha vida, do mestre Mario Quintana: “Todos estes que aí estão/ Atravancando o meu caminho, Eles passarão. Eu passarinho!”.

Acredite também, acredite em você, vai na fé e, já que estamos em tempos de “Star Wars” outra vez, fica minha mensagem de paz e otimismo: que “a Força esteja com e em você”. Vai que é sua. Sejamos um pouco Cândido, sem perder o senso crítico. Feliz ano-novo. Vale a pena. Vejo sua última frase:
“— Tudo isso está muito bem dito, mas devemos cultivar nosso jardim.”







Jornal Correio em 27 de dezembro de 2015



https://drive.google.com/file/d/0B3a7BJIdLwOhOGhUZVhFNUhwZWs/view?usp=sharing

segunda-feira, dezembro 21

Quintal luz





Noite passada, presenciei deslumbrante espetáculo. No elenco, milhares de atores e figurantes. Fiquei paralisado com tanta beleza. Não havia cortinas para se abrir e o palco era a imensidão. Associar o apoteótico “gran finale” daquele maravilhoso momento aos mais belos espetáculos de luzes do mundo seria pouco, ante a beleza que escorria do ar bem ali à minha frente no meu quase quintal.

Fui nascido e criado sempre junto a grandes quintais. Meu mundo, meus sonhos, minhas descobertas das pequenas e grandes coisas estão visceralmente ligado a eles. Ali não precisava de nada, nem de ninguém, criava um imaginário lugar onde tudo era belo e funcionava. Ali me escondia. Claro, à medida que eu, infelizmente, crescia, os quintais de minha vida ficaram menores. Queria sempre mais espaço.

Aprendi com os habitantes dos quintais ser o que sou. Sapos, pererecas, galinhas, passarinhos milhões, fadas, sacis e outros tantos, me contavam os segredos do mundo. Ali, ávido li milhões de livros. Em dias de Sol, me deixava ficar deitado na grama a olhar nuvens criando formas. Conversava sozinho, me contava histórias e inventava sonhos. Sozinho no quintal, sonhei minha primeira namorada. Era linda. Cabelos loiros, olhos de um azul mineral. E ela gostava de mim. Na verdade, nunca tive uma namorada loira, mas nos meus quintais da vida podia. Depois, adulto, já não sonhava loiras, nem namoradas. Sonhava viagens, sonhava lugares sonhava histórias.

Hoje não tenho mais quintal, mas tenho sonhos. O quintal carrego comigo, como caramujo carrega concha. Como caranguejo eremita assumo posse temporária de algo que não construí.

O quintal a que me referi lá no início não passa de uma área comum de onde atualmente moro. Agradável, mas impessoal. Para minha sorte, parte de meu eu criança me permite muros invisíveis, jardins e árvores imaginárias. Crio meus quintais, minhas veredas, minhas florestas. Mas o espetáculo foi real. Horário de verão tem o grande prazer de atrapalhar quase tudo. Custou a escurecer e meus beija-flores ainda vinham ávidos buscar um último golinho de néctar. Voavam cansados, olhos pesados, mas cadê noite para aquietar?

Pronto, custou mas veio o manto de lua nova. Enfim se fez noite e, como passe de mágica, zilhões de quase estrelas vieram brincar em meu quase quintal. Um esvoaçar de brilhos. Natal luz que nada, meu quintal luz particular. Vaga-lumes brotavam do vazio e se espalhavam a minha volta, em festival de romântico caçar de par. Alguns por engano entravam por minha janela. Corria lá e tratava de colocá-los para fora, onde os feromônios eram mais fortes. O amor literalmente estava no ar. Quanto tal beleza me fazia falta. Senti-me tão vivo.

Fechei com força os olhos e como se recebesse a bênção de centenas de estrelas cadentes, personificadas em cada luzinha daquelas, fiz meu pedido. Vai, vaga-lume, ilumina a noite, meus sonhos, a vida. Corre atrás da eternidade da perpetuação de sua colorida e luminosa espécie. Quem sabe um dia terei novamente quintal de verdade, para com mais pompa recebê-los.











https://drive.google.com/file/d/0B3a7BJIdLwOhTUJYZlpVYTZ3RkE/view?usp=sharing

segunda-feira, dezembro 14

Fumaça



A noite chegou. Horário de verão complica a vida de todo ser vivente, custa a escurecer e o amanhecer demora mais um pouco. Particularmente gosto, pois posso aproveitar um pouco mais o fim de tarde. Confesso, chego ao fim de semana cansado de um não sei o quê. Fico imaginado as gentes que moram na terra de Papai Noel e aproveito o clima de Natal, apesar do mesmo não estar para peixe ou peru. Na Lapônia, que fica encostada no círculo Ártico, acontecem em alguns períodos “noites sem noites”. É quando o sol nunca some na linha do horizonte, corre por ele de ponta a ponta, mas não desaparece.

Assim têm luz vinte e quatro horas por dia, durante meses. Coitados dos poetas, dos seresteiros, dos namorados. Gilberto Gil se lá vivesse, jamais teria composto “Lunik 9”, pois jamais “haveriam derradeiras noites de luar”. Aquela noite, que mansa chegou, seria diferente. Lua nova, escuridão total, canto longe de alguma Mãe da lua, pensando ter perdido sua companhia. Os Urutaus são assim, melancólicos.

Do fundo do breu, uma risadinha arranhada. Um cachorro vigia uivou, de medo. Logo outra risada mais aberta, seguida de outra e mais outra. Depois de certo tempo o que se ouvia era um gargalhar de milhares. Risos de doer o estômago, como quem boa e bem contada piada, ou caso, ouviu. Aquele riso aberto de quem vê alguém levar um tombo em lodo de pedra de riacho. Machucou? Diante da negativa despenca em gargalhar a plenos pulmões. As risadas não paravam. Depois de muito tempo, um movimentar sem fim deu lugar ao riso. Inquietação geral, despencar de lugar algo, esborrachar em chão com som seco, tosses, risos, delírios acéfalos.

Pela manhã, rebordosa geral. Todos para o caminhão. O chacoalhar martelava cada pedaço. Ressaca assim nem de cachaça de carotinho de cinquenta centavos. Quem disse que conseguiam ficar em formação ali na carroceria? Para espanto geral, mal se mantinham, e não era o balanço de estrada esburacada não, a zoeira estava dentro de cada um. Volta e meia, quando o vento conseguia levantar parte da lona que os cobria e uma brisa gostosa entrava sem educação, o alívio era breve. Alguns mais resistentes ainda davam longas, sinistras e sonoras gargalhadas. Motorista e ajudante se entreolhavam arredios na boleia.

Aqueles tijolos, depois da queima de droga tipo cocaína, crack, cigarro falsos, toneladas de “Maruamba” em forno de cerâmica pela Polícia Federal, por muito tempo não iriam prestar para levantar paredes, podia até bater prumo, mas logo, no meio da linhada assentada, um risinho arranhado se faria ouvir e logo a algazarra novamente se instalaria.

Pedreiro assentava hoje, no dia seguinte, encontrava confusão de formatos de paredes do nada, efeito “poltergeist”. Amanheciam de ponta cabeça equilibrados em apenas um cabo de enxada. Os tijolos, muito doidos, não conseguiam ficar parados em pilhas. Farra do bode no transporte até a obra, depois só confusão. E cadê peão para voltar trabalhar nessa obra?

Roubo frase de, nem acredito, “Max Payne” um game antigo: “Não sei quanto aos anjos, mas o medo é que dá asas aos homens…” Ótimo domingo!







Jornal Correio em 13 de dezembro de 2015




Fumaça

segunda-feira, dezembro 7

Consolo



Para uma amiga em dor certa feita escrevi, sê Fênix.
Usufrui do direito quem tens ao sofrimento real, ele é teu e único.
Necessário.

Mas lembra-te, a vida segue inexoravelmente seu curso. Atropela os incautos, deslumbra os afoitos, premia os justos e corajosos.

Após amarguras sentidas transforma-te, sê a grega e mitológica ave, que além de seu eterno retorno das cinzas é capaz de suportar pesadas cargas. Ressurge exuberante e mais sábia, mais serena.

Desvenda os mistérios que regem nosso universo, eterno, possível, prazeroso.
Sê feliz querida amiga, sê feliz.














Escrever


Imagem web


 

Não sei se já aconteceu com você querido leitor, mas aposto que sim. Sabe aquele dia quando, por mais que você queira, não consegue escrever uma linha sequer? Não, não é meu caso hoje em particular, pelo contrário. As ideias e os estímulos são milhares, assunto não anda faltando. Basta andar pelas ruas de qualquer cidade, ler um jornal ou sentar em um boteco sozinho que seja, pedir uma cerveja, uma garrafa de água mineral e se deixar ficar. Pode ser numa praça também. Os bancos à sombra ou na noturna penumbra são locais perfeitos para armar tocaia. Com olhar e ouvidos atentos, logo captura-se uma ideia, uma história.

Como em toda boa caçada é bom fingir desdém, pois algumas ideias são ariscas, parecem canarinhos rondando arapuca da infância. Mesmo com quirera farta à disposição os danadinhos custam a entrar debaixo da armadilha. Mas é exatamente aí que vive a emoção. O entra não entra, a tensão, a espera.

Melhor do que essa sensação, só o desarmar da armadilha com o bichinho lá dentro e correr para segurá-lo. Um afago na cabeça do apavorado, sentir seu coraçãozinho repicando entre seus dedos e depois de manso abrir a mão, deixá-lo ir embora em voo ligeiro.

Tinha um amigo que arrancava o rabo das avezinhas não apenas para vê-las voarem cotós e de lado, mas para que elas apreendessem a ter medo de arapuca e nunca mais caíssem numa. Não sei se funcionava, mas a verdade é que nunca pegamos um passarinho cotó em nossas caçadas.

Pois, naquele tempo, não havia esse papo de politicamente correto, de vida sustentável, de preservar bicho. E, mesmo assim, sem aulas ou repressão externa, mas por natureza mesmo, não gostávamos de prender, nem de judiar de bicho ou criação. Os de prender eram estrangeiros e que não conseguiriam viver soltos, tipo canário belga ou periquito australiano. Nunca entendi bem essa história de não aprender a viver solto. Será que tem até bicho que nasce com sina de prisão?

Se nunca gostei de prender bicho, com ideias a história era e é outra. Desde muito miúdo, tomei gosto pelo agarrar as escorregadias lembranças que por mim passavam. Na praça, no bar, na venda de beira de estrada, onde quer que eu vá, carrego sempre isca de pegar ideia. Aliás, estou prestes a patentear uma máquina de pegar ideias que inventei para tal.

Tenho de confessar que me inspirei na máquina de esticar horizontes, de Manoel de Barros, uma de suas mais geniais invenções. Está em fase de testes, mas tem me dado bons frutos. O problema é quando as ideias chegam em bando, em alvoroço discreto de bicos-de-lacre, miudinhos e belos. Minha máquina ainda tem o defeito do encanto e isso a distrai a ponto de perder todos os pensamentos. Questão de tempo, aprimoro o instrumento, talvez lhe dando mais portas, mais ouvidos, mais olhos atentos.

Assim, meu amigo, se algum dia se sentir entrevado no escrever, liga não, são ideias que andam pousadas perto. Preste atenção na direção do vento que elas lhe contarão segredos inimagináveis. Relaxe e se deixe ficar. O papel nunca ficará em branco. Bom domingo.






Jornal Correio em 06 de dezembro de 2015




Escrever

segunda-feira, novembro 30

Semana



Como é que você conta os dias da semana? Como diria um amigo em reposta a um “post” quando pergunto quem será que compra o Petróleo do Exército Islâmico (EI): “Todo mundo, pô! Todo mundo precisa de petróleo. Que pergunta mais besta!” Claro que no rápido ler penso que meu querido amigo de décadas foi rápido demais, pois a pergunta não se referia ao mundo árabe, mas sim ao petróleo dos poços ocupados por estes senhores da guerra e do horror. Mas e aí como você conta os dias da sua semana? Outra pergunta besta, pensaria a maioria: Uai conto como todo mundo: primeiro vem a terrível e ressaquenta segunda-feira, o dia mais odiado segundo pesquisa feita pelo International research center for absurd affairs – IRCAA, para a sigla em inglês. Ah, tal instituição foi criada agora. Depois vem a terça, maioria dorme mais cedo e os resquícios da esbórnia começam a diminuir, mas, por favor, fala mais baixo!

Pronto, a quarta chega e a semana começa de verdade, tem futebol, chegou-se ao meio e para baixo todo santo ajuda, logo se avista uma quinta e, glória ao criador, sangue de Jesus tem poder, chega a sexta novamente. É mais ou menos assim? Pode ser, pode ser. Mas que dia mesmo começa a tal semana ou as sete manhãs? No domingo ou na segunda? O dicionário nos explica:

“Primeiro dia da semana, depois de sábado e antes de segunda-feira.

“Domingo.” “Na tradição cristã, último dia da semana, consagrado ao descanso e à oração.”

Dizem que a Diretoria descansou ao sétimo dia, aí resolveram chamar de domingo esse dia.

Na verdade pouco importa, pois o domingo pode ser tudo, “consagrado ao descanso e à oração para uns”. Futebol, se tiver jogo do Galo é sagrado, churrasco e cerveja para outros. Rezem por nós.

Mas existem outras formas de se contar dias da semana. Sabemos desde que o mundo é mundo que jamais conseguiremos fechar nossas agendas de trabalho e que muito ficará para a semana vindoura. No nosso caso que trabalhamos com emergências então, não existe agenda, a mesma é o cotidiano do mundo, perigoso de Riobaldo Tatarana, assim, conto a semana com bananas, ou maçãs. Isso mesmo, frutas. Todo dia no meio da manhã enganamos a fome com uma delas, trago na segunda cinco frutas que aqui ficam guardadas. Cada dia uma que vai. Esqueço dos nomes dos dias, mas sei que estamos no quarto, quinto ou sexto contando minhas frutas.

Enfim existem mil formas de se contar os famosos cinco dias úteis, seja por cigarros fumados, noites de prazer, dívidas e/ou dia de pagamento. O importante, caro amigo, é que se curta cada um deles, pois aqui nunca se ganha tempo, cada segundo que passa é poeira de retirada e o caminho não tem atalho. “Carpe diem” poeta vivo, aproveite o dia.

Resolvida a questão da semana. Pergunto: e em previsões de horóscopo você acredita? Tenho um outro amigo que deixa de viajar se o dele der algum sinal de perigo. Sem razão, pois, na verdade, ele tem de conferir é o signo do piloto do avião, ou não?

“Eu sou de Virgem e só de imaginar me dá vertigem” aproveito e passeio “Pelas vitrines da Sloper da alma”. Não é, João Bosco?






Jornal Correio 29 de novembro de 2015




Semana

segunda-feira, novembro 23

Com “oui” ou com uai





O título aí no alto peguei no Facebook, uma alusão às duas tragédias recentes. Mariana e Paris. Dei uma de químico da observação e deixei decantar os comentários torrenciais que, como o mar de lama da Vale do ex-rio Doce, entupiram as redes, devastando tudo. Pacientemente, esperei a poeira (?) baixar um pouco e me arrisco a dizer o já dito. Não quero entrar no mérito do ranking da tragédia – qual é mais ou menos “importante”. Aqui vão apenas observações minhas que, certamente, vão provocar a ira e indignação de alguns. Sabemos que daqui a alguns dias – e serão poucos – o acontecido em São Bento, assim como lá do outro lado na cidade Luz, não passará de notícia antiga e não comoverá mais ninguém, vamos ser honestos pelo menos com a gente mesmo. Aqui obviamente não me refiro a pais, mães, irmãos e amigos, para os quais a dor será eterna.
Alguém ainda chora os mortos da boate Kiss?

Quantos ainda rezam por Aylan Kurdi? Esqueceu quem é? Aquele menino lindo morto numa praia na longínqua Turquia das “Mil e Uma Noites” – e pelo amor de Deus, não me refiro a nome de novela!
A mesma mídia que traz a tragédia é a mesma que a apaga, substituindo manchete que já não mais vende. Secam o bagaço da dor e o jogam nas nossas caras como se nada tivesse ocorrido.

Mas aqui quero mais é falar ou desabafar. Nunca em minha vida tinha visto um clima tão hostil, tão medíocre. Qual tragédia é mais importante, a nossa ou a deles? Qual a imprensa cobre mais, dá mais tempo à nossa ou à francesa? O tempo de televisão parecia coisa de campanha política, cada um tem de ter o mesmo tempo, nenhum segundo a mais do que o outro. Mediadores? Milhões de brasileiros inconformados. Quem são esses caras que logo agora aparecem para estragar nossa tragédia pessoal? O maior desastre ambiental nacional vai ser ofuscado pelas luzes de Paris? Que absurdo as cores da bandeira da França no Palácio do Planalto! E nós, em “Bleu blanc et rouge” e nem por isso sofri menos pelo nosso doce rio e sua lama assassina.

Não existe um medidor de tragédia, todas são sinônimo de sofrimento, dor profunda. Lágrimas. Uma, a de São Bento resultado de negligência, descaso, usura, ganância. A outra fruto da intolerância, do ódio. Já as vidas perdidas na lama ou na bala são idênticas.

Nós, brasileiros, nos tornamos competitivos até nisso, menos no que realmente interessa. O bem comum que se dane. A clássica frase de que “Mineiro só é solidário no câncer” serve para uma nação inteira, principalmente aqueles aculturados apenas pelas redes sociais, onde o “profundo” é de um reducionismo horripilante. Será que é falta de futebol decente? Sem futebol, sem piloto de fórmula, um de destaque, só restando os gritos de locutor imbecilizado que mora fora do Brasil?

Choro e convido a todos, por ambas as tragédias e por muitas outras já esquecidas. Rezo do meu jeito sempre por todos os Aylan Kurdi do mundo, sejam de onde forem e que se lasque o imbecil ufanismo da miséria, da morte, da dor criado – pelo visto – apenas aqui em nosso País. Somos maiores do que isso.
Termino com frase de minha filha, que, por sinal, se chama Mariana e não é mera coincidência, que escreveu em sua postagem única, pois inteligentemente não ficou dando corda para os sectários da miséria, da abjeção: “A única religião de que a humanidade precisa é o AMOR.”






Escritor e poeta do invisível


Jornal Correio em 22 de novembro de 2015




https://drive.google.com/file/d/0B3a7BJIdLwOhODRUM2JnajdENlE/view?usp=sharing

Vigília

Clique na cronica abaixo  para ampliar



Como diria Charlie Brown para Snoppy, ambos filosóficos personagens do saudoso cartunista Charles Schulz, que nos deixou há mais de 15 anos, “criador da tirinha “Peanuts”, um dos maiores fenômenos mundiais dos quadrinhos” segundo o jornal “Folha de São Paulo”. Outro dia falei de rede social, mas este infinito mundo de bites, cálculos geodésicos, PHPs, Java, além dos às vezes indecifráveis “vc”, “tb”, “naum”, “fmz”, “ahsuhaisjslaskdjlsk”, nos oferece um mundo novo de oportunidades únicas, basta saber usar.

Bom, mas deixemos para programadores e, principalmente, para educadores o assunto avaliarem e discutir onde tudo isso vai parar, do desenvolvimento de programas ao crescimento humano. Nós leigos nos limitamos a tentar usar de tão rica ferramenta da melhor maneira possível.

Voltando à vaca fria ou aos nossos carneiros, “revenouns à nous moutons”. Na tirinha mencionada antes do divagar, Charlie Brown, sempre pessimista, em suspiro reflete:
“– É, algum dia todos nós vamos morrer, Snoopy.

Ao que fiel escudeiro, o filósofo das banalidades profundas, o cãozinho Snoopy imediatamente retruca:
– Verdade, mas todos os outros dias, não.”

Conto este caso para poder contar outro que ouvi de uma amiga de longe, sem tentar atrapalhar o domingo de ninguém, pois infelizmente falar de morte aqui no ocidente, esta passagem ainda é vista com medo e reservas sendo que assim não deveria ser, como um dia diz Charles Bukowski: “Todos vamos morrer, todos nós, que circo! Isso sozinho deveria nos fazer amarmo-nos uns aos outros, mas não faz.”
Sem mais enrolação cara, ao caso enfim!

Mãe e filho cumprem a dolorosa obrigação de irem a um velório de parente distante, pouco visto, pouca relação, a última vez que toparam em vida o tempo tinha apagado lembrança. Mas fazer o quê, e lá se foram cumprir ritual. O falecido teve vida boa e morreu de morte natural morrida mesmo às vésperas de completar cem anos, nunca tinha ficado doente, nem gripizinha dessas que todos nós pegamos com frequência mesmo após o advento da vacina contra as danadas.

Sua comida foi sempre feita em banha de porco, adorava ovos e carne mal passada. Nunca abandonou sua cervejinha de fim de semana e a pinguinha diária antes do almoço. Para deixar muitos com inveja, morreu, fez a passagem, desencarnou, bateu com as dormindo e em paz. Muito rico, não deixou testamento, a família agora como de praxe ia se desintegrar em brigas pelo espólio do falecido.

Lá pelas tantas, enfarado obviamente, criança em velório é tortura, e não aguentando mais puxou a barra da saia da mãe e cabreiro sussurrou:
– A senhora já veio aqui antes?

Achando que o filho estava confuso com aquilo tudo, pois era debutante em velórios, a mãe diz que sim, várias vezes e tentou engasgada, explicar ao filho o sentido e da brevidade da vida. Mas qual, pergunta veio na lata:
– Então, você sabe se aqui tem Wi Fi. Qual é a senha?

A mãe fechou a cara horrorizada e disfarçadamente, mas rosnou:
– Respeita o defunto…

O menino com sorriso estampado no rosto, não se conteve, rumorejou eufórico:
– Tudo junto, mãe!?







Jornal Correio em 22 de novembro 2015





Vigilia

segunda-feira, novembro 16

Nove moças e um frango


Imagem da web
O ano? Não me lembro mais. Época boa, estudante morando em república, precisa mais? Apertos comuns a todos e já deles falei, mas que eram recompensados por uma vida em que a maior preocupação era fechar todas as matérias do período. Apesar de o curso ser integral, dava-se jeito de trabalhar à noite. Aulas de inglês. Puxado, mas divertido. As repúblicas faziam alegria e aborrecimento da cidade, morar vizinho de uma podia ser sinal de dor de cabeça. Sempre tivemos vizinhos muito bons e compreensivos, nos suportavam, relação harmônica.

Pois foi nesse tempo que aconteceu ótima passagem. República só de garotas. Nove de uma vez, cobiçadas, viviam cortejadas por filas imensas de estudantes vorazes em adolescência. Moravam em um prédio baixo, três ou quatro andares apenas. O apartamento delas parecia dormitório de colégio interno de freiras. Sete camas militarmente enfileiradas e, ao fundo, um beliche.

Sempre imaginava como seriam as noites ali. Lá pelas tantas, os falares dormindo, os roncos, é, acha que não? Meninas também roncam e alto às vezes. Pensa-se que cozinhar não seria problema, pois dezoito prendadas mãos estariam ali sempre alegres e dispostas a fazer almoço e jantar. Vai nessa. Pena que em nosso tempo não existia Restaurante Universitário (RU). Ali nas meninas custava sair um café. Nove de uma vez, cada uma com um gosto, cada uma com desgosto de alguma coisa. Coentro nem pensar, sal de mais, sal de menos, comida no óleo, comida na banha. Melhor era cada uma comer onde bem entendesse.

Ciclos menstruais sincronizados têm disso, convivência. Casas dos horrores de cólicas e humor tétrico, TPM voando pela janela em rosnares. Ai do moço estudante que aparecesse por lá nesse período rubro-negro do mês. Assim eram as nove meninas. Um belo dia, resolveram, depois de muita, mas muiiiita conversa, fazer um frango caipira. Uma delas trouxe de casa na roça um vivo. Começou o dilema, quem ia matar o penoso. A faca de pouco fio, como quase toda faca de república feminina, passava de mão em não.

– Não pode ter dó senão não morre!

– Eu não faço isso nunca, faço veterinária para cuidar de bichinhos e não matá-los.

– Ah sei, mas churrasco no Vila Verde você come, né!

Passa o tempo. Tentam imobilizar o frangote. Uma segurando numa asa, outra noutra e nas pernas mais duas. Seis para imobilizar, uma para sangrar. Arrancar as penas do pescoço outro sofrimento.

– Pega minha pinça de sobrancelha – gritou uma. – Tadinho…

– Já diz, não pode ter dó! Ai é que não morre nunca.

Tarde caindo, fome apertando, o galo exausto quase se matando para ter sossego. O que se via eram nove meninas descabeladas, suadas, espalhadas pelos cantos. Não deu outra, desistiram e, banho tomado, refeitas e maquiadas, faceiras foram comer galeto frito no Sobrado, felizes da vida ver os moços e serem vistas. De lá para o Pedal (D.A. da Pedagogia, Economia, Direito, Artes e Letras).

Quanto ao frango. Bom, este também se refez, trocou penas, saiu da requeima do pretenso sacrifício, mudou-se para terreiro de vizinho das meninas. De lá, toda madrugada, cantava forte atazanando-as até que formadas, foram embora cada uma para seu canto.







Jornal Correio em 15 de novembro de 2015




Nove moças e um frango

segunda-feira, novembro 9

Fim de temporada

Fim de temporada de corridas no asfalto, uma ou outra pode surgir, mas meu calendário 2015 oficial encerrou. Fechado com chave, ops, com medalha de OURO na #Udi21. Ficam algumas trilhas por fazer. Pois que venha 2016 com muito, mas muito chão.





Sincericida



Pois não é?! A gente chega a certa idade em que as coisas ficam de uma simplicidade que só. Não me refiro à idade contada em primaveras, luas, sóis, mudas de pele ou carnavais. Falo de uma era que está dentro de cada um. Conheço muito menino velho e um tantão de velho menino. Aqui, uma pausa para, pela última, vez, explicar gênero. Meninas velhas e tais estão também incluídas.

O lance é que, da mesma forma que me nego a adotar a tal nova ortografia, a questão de gênero nos escritos não me pega. Sou, sim, plenamente concordante quando diz respeito ao ser humano, suas escolhas, sua liberdade. Não me refiro aqui a essa chata linguística, mas à diferença e discriminação de escolhas pessoais e intransferíveis. Achei um absurdo negarem este direito à discussão nas escolas mornas e carregadas de preconceitos, debate vazio de bom senso, sobrou hipocrisia.

O linguista, semiólogo, filólogo, poeta, entre outras coisas, Aldo Bizzocchi, lança luz sobre o dito: “[…] há uma pitada de “politicamente correto” nessa história, já que gênero seria, supostamente, uma palavra mais “neutra”, sem conotações sexistas […]”. Sinceridade? Uma afronta à inteligência de nossas crianças que, assim, perdem uma oportunidade ímpar, em pleno século 21, de colocarem a cabecinha para pensar aberto, a entender e respeitar diferenças. Seremos lembrados como o século da caretice. Uma pena.

Explicada a minha posição em relação aos “os” e “as” definitivamente? Então, pronto. Como eu dizia, os jovens velhos são, literalmente, um pé no saco. Parecem abacate madurado embrulhado em jornal ou dentro da saca de arroz, da tulha ou ‘tuia’, aqui em nossa Minas. Sem gosto, sem sal, sem doce. Chatos precoces, se acham. Ô paciência! Vai discutir com eles Kant, Maquiavel ou Dante – aprendido no wikipédia – interpretações de arrepiar careca. Moinhos de Don Quixote, amor de Quasimodo pela cigana Esmeralda, fariam Cervantes e Victor Hugo dar piruetas no céu dos escritores.

O que vem acontecendo comigo é que peco quando em vez por excesso de sinceridade. Minha cota de sapos finalmente se esgotou. Sei que posso, às vezes, passar por mal-educado ou até grosso. Não, grosso não, mas me nego a esconder o que penso e como penso. Acontecidos errados, injustos que vejo/ouço não me calo mais: conto, defendo, denuncio publicamente. Amiga comadre, que padece do mesmo mal, recentemente me alertou que gente como a gente pode estar sujeito a um “sincericídio”, pois o ditado popular nos alerta; “o peixe morre pela boca”. Não adianta procurar no dicionário, pois é palavra criada, língua viva. O “sincericida” não é, mas pode se tornar ato dramático ou, no mínimo, injusto. A liberdade de expressão só livre se agrada, caso contrário, fadado a perseguição e inimizades.

Pagamos o preço de ser absolutamente livres; não tememos represálias nem opressão. Paz de consciência. Ah, e somos bons no que fazemos, além de modestos, é claro. Se é disso que vou morrer, me vou tranquilo, “Duela a quien duela”, mas palavras de certo caçador por nome Fernando. Quer mais? Não carece.








Jornal Correio em 07 de novembro de 2015




https://drive.google.com/file/d/0B3a7BJIdLwOhTURISVBnYWlwTEE/view?usp=sharing

terça-feira, novembro 3

Panta rei



Maravilhosa chuva de quarta passada, pena, não choveu em toda cidade, todos mereciam seu frescor revitalizante. Aos primeiros pingos grossos, podia-se notar a poeira da calçada se debatendo em agonia. Milhares de grãos de terra levantavam em minicogumelos atômicos, espalhando pó para todos os lados. Durou pouco. Logo a chuva ritmou em nota única e debruçou forte lavando chão, telhados, folhas e almas. O pó se foi enxurrada abaixo. Aos poucos, outras notas eram ouvidas; bicas d’água nos telhados, o batido da água em folhas e grama, o tamborilar em latas e baldes. Metais, cordas, sopro, percussão. A regente? A chuva. Bem-te-vis aguardavam quietinhos o poslúdio de bela sonata.

A primeira vontade foi de sair e abrir os braços sob o toró. Cheguei a tirar as sandálias e caminhar para a porta. Em outras épocas, iria direto para a chuva e ali me deixaria ficar. Parei na varanda. Me peguei olhando de um lado para outro como se estivesse prestes a cometer ato falho. Não deixou de ser, pois dei um pause na minha mais forte vontade, um dedo repressor imaginário me apontava.

Casa nova, vizinhança pouco conhecida, me deu certo receio. Explico, mudei para onde estou há pouco tempo, depois de morar quase três décadas no mesmo lugar. Como em Pasárgada, na casa que escolhi construída a gosto e jeito.

Não conto história com tristeza ou mágoa. Conto fato, como certeza da permanente mutabilidade de nossos rumos. Não sou vítima nem algoz de absolutamente nada. Sou consequência, ou parte dela. Não dominamos nem o segundo mais próximo a nós, imagina uma vida inteira.

Agora morando só em lugar diferente, respirando ares novos ainda não me sinto tão à vontade. Caminho para isso. Tempo.

Parei na pequena varanda e me satisfiz com os respingos que, em segundos, molharam minha perna, meus pés, meus pensamentos. Encostei na parede, me dei por saciado com o carinho que a fria água fazia. Afago gratuito, sem cobrança, sem pedir nada em troca.

Um beija-flor pousou em trepadeira florida que se dobrou bela bem defronte à minha porta, aproveitava sabiamente os mesmos respingos para se banhar nas folhas. De tão miúdo, um único pingo poderia lhe trazer sérios problemas, uma asinha quebrada, uma dor de cabeça imensa caso o acertasse em cheio entre os olhos. Olhos estes que, quando me dei conta, pareciam me fitar. Com curiosidade devia pensar: “Poxa, uma coisa tão grande e com medo da chuva? Ou esse humano sabe de algo que não sei?” Deu de ombros, deu de asas e bico e continuou seu banho de fazer inveja, pensamento livre de medos e solidão. Ele, pequena joia, se bastava em sua felicidade.

O ar agora cheirava, finalmente, à primavera. Outubro se vai ligeiro, as águas aguardam em algum porto o momento de desembarcar e saciar nossa sede de vida.

Nada é para sempre. Nem os sentimentos mais profundos, meras impressões do vivido, nem as mais prolongadas secas. Panta rei, tudo muda. Mesmo quando verdes musgos tudo dominarem e as roupas e casas cheirarem mofo e alguns começarem a maldizer invernada. Ovos nos mourões de cerca e rezas para Santa Clara, fica a certeza. O sol voltará a brilhar. Heráclito era o cara.







Em Jornal Correio de 1º de novembro de 2015



Panta rei

segunda-feira, outubro 26

Happy hour



Tenho um sentimento de dor e alegria quando boto reparo em artistas da noite. Músicos, cantores lutando para sobreviver e tendo de se expor a situações, para mim, constrangedoras. O pessoal lá dando sangue em seu trabalho e a plateia… Disse plateia? Pessoal do bar, do clube ou seja lá onde for, pouco se lixando para o que toca. Ao fim de cada música, uma ou duas pessoas batem palmas tímidas.

Outro dia, em um happy hour desses por aí, ouvi de um violonista muito bom um agradecimento inusitado e bem-humorado:
– As palmas são poucas, mas sinceras, diz filósofo chinês Ping Pong Pung.

Achei perfeito. Mesmo assim, os pedidos de músicas não param de chegar, seja por grito de algum bebum, seja pelo antigo papelzinho levado pelo garçom. Os caras são heróis. Rendo aqui minha homenagem a todos os artistas da noite. Vocês, são guerreiros.

Aproveito e reconto caso que há muito tempo ouvi. Noite alta, madrugada querendo descansar em bocejo comprido silencioso, só esperando sol dar as caras. Entre prédios da cidade grande o amanhecer demora mais um pouco, a linha do horizonte já não se delimita por montanhas, mar em beijo de bom-dia com as luzes do alvorecer.

Em ambiente assim tomado de fumaça, mesas empilhadas, garçons já sem suas roupas de trabalho aguardam pacientemente, escorados em balcão de couro, um último freguês. Ali jamais amanhecia. Conhecido da casa, não podia ser enxotado. Ao piano desgastado pelo tempo, mas muito bem afinado, tocava de olhos fechados em longo cochilo. Anos na noite o ensinaram esse maravilhoso truque. Sob a madeira repleta de manchas de copos, quieto sem gelo, produzindo pequenas ondas circulares no amarelo ouro da bebida a cada nota mais forte, uma dose generosa de uísque.

O músico de olheiras fundas, paletó jogado a canto e gravata com nó desatado, atendia um a um os pedidos do incansável ébrio cliente. De sua mesa, observava com a atenção que ainda lhe sobrava o vazio salão. A cada fim de música, batia frenéticas palmas e gritava a plenos pulmões: “Bravo!” E seguia, “toca aquela”. Pianista agradecia mecanicamente, com um suave balançar de cabeça e gentilmente, atendia pedido. Gorjeta polpuda, e sabia disso.

Hora, do nada, um macaquinho apareceu entre as mesas, subiu no piano e cuidadosamente subiu no copo de uísque, molhou o rabo e correu para longe. Pianista nada percebeu, já o cliente, em susto, quase caiu da cadeira, esfregou com força os olhos pensando estar louco. A cena se repetiu duas, três vezes. Coração aos pulos, levantou cambaleante e derrubando cadeiras empilhadas chegou ao piano e sussurrou ao ouvido do velho músico:
– Escuta, o macaquinho molhou o rabo em seu uísque.

Este parou um pouco, como a decifrar o lhe foi dito. Do nada e em espanto de olhos agora bem abertos de conhecedor de tudo que se toca na noite, bateu a não no teclado e quase em gaguejo respondeu:
– Caraca meu, esta eu não conheço, mas faz o lá-lá-lá que eu te acompanho.

Não sei o motivo, mas me veio à cabeça Humphrey Bogart, genial, interpretando Rick Blaine em “Casablanca”. Disse ou não disse?
– Play it again, Sam!






Jornal Correio em 25 de outubro de 2015



Happy hour

segunda-feira, outubro 19

Zumbido



Menino novo antenado com as tecnologias. Esforçado na escola, aluno de Veterinária na Federal de Uberlândia, um dos dez mais conceituados no País. Vida seguia calma e sem atropelos. Um sobressalto matutino mudaria o correr de riacho entre veredas sombreadas, onde o som mais alto que se fazia ouvir era o pulo da cachoeirinha batendo em poço largo e fundo, onde a bicharada estava acostumada a se refrescar e molhar pelos e penas.

Em susto, coração disparado, sentou-se ligeiro, de olhos arregalados na cama. Vozes, milhares delas começaram a conversar dentro de sua cabeça. Sacudiu, bateu a palma da mão aberta na testa por várias vezes e nada. As vozes agora cantavam um sertanejo universitário, talvez o sabendo ser ele estudante de Veterinária, em um querer lhe agradar. Sua vida dali para frente virou um tormento. Dia e noite eram músicas sobre músicas. No começo, lhe apraziam, pois faziam seu gosto musical, mas a repetição sem fim foi lhe cansando, levando-o à exaustão.

Não contou para ninguém sobre o martírio por medo de lhe considerarem louco. Mas as mudanças físicas, de tão visíveis, chamaram a atenção de seus pais. Sorte sua não morar em república como em nosso tempo, pois, se assim fosse, a chance de alguém notar seria mínima. E só em tempo de férias ou feriado prolongado, em casa, atinariam que algo não estava certo.

Se antes falava manso, seu tom de voz agora era outro. Vociferava na tentativa de vencer aquele suplicio musical. Passou a ter sérias dificuldades de aprendizado e relacionamento, escondia-as do mundo em canto escuro de quarto num balançar de corpo frenético. Sofria.

Não atendia os telefonemas de namorada nem dos colegas e faltava às aulas com frequência preocupando a todos. A família se pôs atenta e mesmo contra a vontade do nosso rapaz, conseguiu convencê-lo a duras penas a procurar ajuda médica.

Acompanhado de pai e mãe pegaram rumo ao recurso. Psiquiatra, mãe?! Ah não, vocês também estão achando que fiquei doido? Calma, filho, vai dar tudo certo! Ela, carinhosamente, lhe afagava os cabelos. O pai, solidário, não largava ombro do filho em carinhoso abraço. Sala de espera. Horror dos horrores, tempo não passa. Daí, talvez, acho que já disse isso, venha o nome paciente. Pois haja a bendita.

Finalmente chamados, entraram os três, pois sozinho ele ia não. Exame clínico ligeiro, passou a inquiri-lo com jeito sereno dos especialistas.
— Tem tempo que vem ouvindo estas vozes, estes cantos?
— Pelo amor de Deus, doutor, será que me tornei esquizofrênico? Li muito sobre isso.
— Calma. Mas me diga, tem algum momento que as vozes cessam?
— Bom, quando tomo banho elas me dão sossego, dai penso em só ficar debaixo do chuveiro.

Olhando de um lado para outro cabreiro sussurrou:
— Acho que elas tem medo de água. Pode ser doutor?
— Só no chuveiro elas somem?
— Não. Outro dia resolvi pular na piscina para testar o medo delas e não me acompanharam.
— Tudo bem, mas vamos fazer o seguinte, para continuar nossa conversa será que dá para você tirar esses malditos fones de ouvidos os quais só tira para tomar banho e nadar!?







Jornal Correio 18 de outubro 2015




Zumbido

terça-feira, outubro 13

Imposto



Já perceberam que certas coisas em nossas vidas empurramos com a barriga até não ter saída? Vamos postergando, inventado desculpas para não fazer algo que sabemos que vamos depender dela. Recentemente, passei por uma dessas. Carteira de habilitação a vencer. Diferente da maioria dos brasileiros, segundo pesquisas, ando na contramão do gosto popular. Dizem que o homem “patropi” gosta mais de carro do que de gente. Dedica aos bólidos carinhos e mimos, às vezes, nunca dispensados a pessoas amadas.

É da natureza, está na genética. Quantas e quantas vezes em prosas ouvi queixas e até choros de homens barbados motivados por um arranhão na pintura do carro. Do jeito descrito parecia que haviam rasgado carro com abridor de lata. Todos em uníssono, “hoooo” de pavor, se levantam e vão lá ver o estrago. Cada um com seu olhar clínico de especialista em lesões a autos. Tanta gente em torno da lataria avariada que fiquei do outro lado sem nada ver. Os comentários ultrapassam o limite da sensatez:
— Um cara que faz uma coisa desta merece prisão perpétua — diz um aos berros.

Outro:
— Se pego o responsável por uma sacanagem deste tamanho esfolava vivo.

Inconformados voltam para a mesa do bar, sei que até o fim da noite só vão falar e beber em luto.

Agora, sozinho junto ao carro, resolvo dar uma olhada no estrago. Chego, olho, reparo, chego mais perto, coloco os óculos, quase encosto o rosto para tentar achar algo que merecesse tamanha revolta. Depois de muito procurar, acho um arranhãozinho do tamanho de beiço de pulga, em canto perto da porta. Perco a paciência. E tento lembrar ao dono do carro que sua esposa está no hospital operada da vesícula! Despeço de turma, sigo a pé.

Nunca fui dado ao ato de dirigir e nunca me apeguei muito a carros. Coisas inanimadas nunca me chamaram muita atenção. Nessas, CNH vencendo, lá vou ver o que fazer mas sem muita pressa. Fico sabendo que tenho que fazer um tal curso de renovação, um tantão de horas de aula com a confirmação digital de presença. Fiz mesma coisa que qualquer um faria, e aí não fujo das estatísticas: Reclamar! Somos mestres nisso e péssimos em atitudes. Mais um jeito de arrancar dinheiro, absurdo, desaforo e por aí afora. Tudo que nos é imposto é motivo de esperneio. Claro, quando vemos o tanto de impostos que nos são impostos é de arrancar os cabelos mesmo, principalmente, quando não percebemos retorno na utilização dos tributos.

Sem choro nem vela, fui lá eu a fazer o tal curso. Resmungando, com cara de poucos amigos, depois de anos me vi sentado em cadeira de sala de aula como aluno. Não foi meu espanto que, logo na primeira aula, comecei a gostar! Obra e arte do instrutor, dono de uma didática e técnicas de motivação natas. Surpreendentemente, não vi o tempo passar e podem apostar, aprendi coisas que jamais acreditava que existissem no trato com o trânsito.

É fato que não vou tomar gosto por dirigir, mas ao fazê-lo daqui em diante terei outros olhares ao que me cerca. Peguei a mão certa e não ultrapassarei jamais meus limites. Sinal verde. Sigo.







Jornal Correio em 11/10/2015




Imposto