segunda-feira, outubro 17

Dia da criação




"(…)deverias ter sido riscado do Livro das Origens, ó Sexto Dia da Criação. (…). Melhor fora que o Senhor das Esferas tivesse descansado. Na verdade, o homem não era necessário (…). Mal procedeu o Senhor em não descansar durante os dois últimos dias. Trinta séculos lutou a humanidade pela semana inglesa. Descansasse o Senhor e simplesmente não existiríamos (…)” – Fragmento de “Dia da criação”, de Vinícius de Moraes

Pois não é que essa semana, que passou voando, que nem harpia em retorno ao ninho, comemorou-se o 434º aniversário do calendário gregoriano e ainda o Rosh Hashaná, o ano novo Judaico, segundo o calendário estamos no ano 5778. Ainda temos o calendário Chinês. Estamos vivendo o Ano do Macaco de Fogo. Este, curioso e sem papas na língua, cria amigos e inimigos facilmente.

Para contar tempo, o homem criou mais um monte de calendários, o calendário hegírico ou Islâmico, Calendário Juche que, como tudo mais, só é usado na Coreia do Norte. Bom, de tão isolados que são, só serviria para eles mesmo e não vai fazer diferença para o restante do planeta. Ainda tem o Maia, o Etíope e tais.

O fato é que o homem sempre arrumou um jeito de prender o tempo e tentar usá-lo a seu bel prazer. Quantos não riscam diariamente a folhinha, na tentativa de apressar o tempo por algum motivo? O mais comum hoje é o dia do pagamento. Acaba-se de receber e já começa a marcar o dia do próximo. Não está fácil pra ninguém.

Contam os criacionistas que Ele se desdobrou em criar o mundo no qual vivemos, deu um duro danado e, exausto, resolveu a parada no sétimo dia. Se existisse televisão, certamente iria assistir a um bom programa, um filme, talvez. Os dez mandamentos, não estas versões atuais, seria sem dúvida alguma aquele com Charlton Heston, Yul Brynner, e “grande elenco”. Esse jargão nas artes deve ter sido criado para economizar papel.

Particularmente, acho que Deus, em momento de tensão, de saco cheio de tudo, resolveu pintar os passarinhos e plantas. Esquece o tempo, pensou. Pediu ajuda aos anjos poetas. Decidiram que o vento não teria cor visível, nem aroma especial. Assim, cada um poderia escolher o que sentir. Salgou o mar, mas adoçou rios, riachos e cachoeiras. Distraiu-se com saíras. Alguns querubins as usavam para limpar as mãos de tintas, deixando algumas com até sete cores. E Ele viu que era bom. Deve ter sorrido feliz.
Começou a pensar ao observar as belezas de seus artistas alados — Esqueçam o tempo criaturas. O sol, a lua, as marés, as chuvas e as flores. O amor, fome e sede serão seus relógios. Pronto, aí veio uma merda de uma serpente e atrapalhou tudo.

“(…) o tempo não serve de medida: um ano nada vale, dez anos não são nada. Ser artista não significa calcular e contar, mas sim amadurecer como a árvore que não apressa a sua seiva e enfrenta tranquila as tempestades da primavera, sem medo de que depois dela não venha nenhum verão. O verão há de vir. Mas virá só para os pacientes, que aguardam num grande silêncio intépido, como se diante deles estivesse a eternidade.”

Rainer Maria Rilke em Cartas a um jovem poeta

“(…) o homem não era necessário (…)”

Ficassem apenas os poetas…







Jornal Correio em 16 de outubro de 2016

segunda-feira, outubro 10

Trem bom




Imagem coletada na web

Esse tempo está mais para trem bala do que para maria-fumaça. Ligeiro que só, às vezes, não permite nem paisagem. Da janela apenas mistura de cores, riscos azuis, prováveis rios e córregos da infância. Hora ou outra um rosto. Quem será meus Deus? Puxo da memória. A viagem continua em compasso de xote, nossa polca patropi. Não, o ritmo é zumba, de tão ligeiro. Havia um tempo de toada de maria-fumaça, um tango, um bolero manso. Um arrastar gostoso das horas. Ficou longe. “Maria-fumaça não canta mais/ Para moças, flores, janelas e quintais”, cantou Bituca.

Pois sim, lá se vão quase dois anos a morar só. Totalmente adaptado a nova vida. Já não ocorrem os desperdícios de tudo. Não acontece mais o horror de ter que jogar coisas fora por estragarem ou por validade perdida. Achei o equilíbrio. Já assovio sem razão, canto no banheiro, dou risada sozinho. Outro dia pela manhã acordei com um zumbido forte. Será o quê? Pensei. Pernilongos, isso mesmo. Os danados estavam em turma. Parecia festa e o cardápio certamente seria eu. O “seria” é que, já sabendo dos visitantes noturnos (diurnos também para dar com pau), durmo de cortinado. Isto mesmo. Devo ter sangue tipo gourmet, pelo menos para o paladar voraz dos meus alados visitantes.

Se eu estiver no Mineirão lotado até a tampa, em uma final onde jogam Atlético Mineiro, meu Galo de coração, contra o Cruzeiro, seguramente aparecerá um pernilongo. Um só, desavisado, vindo da lagoa da Pampulha, trazido pelo vento direto para o gramado. Ele vai se recompor, aprumar as asas, dar uma olhada na massa alvinegra, obviamente maioria no estádio, e com seu olhar culicídeo vai me achar. Bem lá no meio, com a nossa tradicional charanga, há “mil anos”, entra na arquibancada tocando “Mamãe eu quero” e pimba! Logo estarei coçando. Ele me acha. Acha mesmo!

Certo dia, frente àquela infantaria pernilongal, saquei de minha já famosa raquete eletrônica e, depois de vários sets de luta, estalos e cheiro de mosquito queimado, postei-me no centro do campo de batalha. Centenas de corpos alados se espalhavam pelo chão. Senti-me o próprio Leônidas durante a Batalha de Termópilas. Não lembra? Tem o filme por nome “300: Rise of an Empire”.

Aquela batalha fora minha, mas a guerra, só rindo, nasceu perdida. Enquanto nós humanos continuarmos a criar esses bichos, não tem jeito, pois, para todos eles, fornecemos em fartura casa, comida e roupa lavada. Quem não quer tamanho aconchego? Leila Diniz: — “Cafuné na cabeça, malandro, eu quero até de macaco”.

O mundo é, e será sempre, dos sôfregos pequeninos.

A vida ligeira que só, me põe a pensar na maria-fumaça e nas estações que à frente estão. Não carece perder tempo em contar quantas ainda temos, mas a velocidade nos trilhos poderia bem reduzir para trote manso, deixando a paisagem passar sonolenta e bela. Um cochilo, vento de serra e perfume de terra molhada. Cada um aperta o maquinista de sua via como quer. Prefiro e assim. Sigo querendo amigo, que seja desse jeito. Mesmo com fornalha em ouro brasa, o resfolegar poderia ser manso, o ranger musical e a viagem bem demorada.






Jornal Correio em 09 de outubro de 2016

terça-feira, outubro 4

Pronto!


O gosto por carne assada e cerveja, muita cerveja, fazia da vida do amigo um eterno fim de semana. De família grande todos com gosto idêntico, mudavam apenas quanto ao time de futebol. Alguns eram fanáticos corintianos, outros flamenguistas e, dizem, meio que de olhos baixos, até são paulino e palmeirense tinha. Porém, não se estranhavam. Levavam tudo na esportiva e gozação, como deve ser quando se trata de futebol e política. Cada um tem o seu time e partido. Eu disse partido? Esquece. Quis dizer candidato, pois até eles, políticos, em sua maioria, andam a esconder o partido a que pertencem. Foi-se o tempo de se bater no peito e dizer com orgulho: Sou Democrata! Outro: Sou Republicano! Opa, acho que errei na geografia.

Não importa, a história é outra. Voltando ao amigo, como disse, de família grande, aniversário é que não faltava. Não importava o dia da semana, tinha que comemorar. Churrasco e cerveja, muita, muita cerveja. Batizado, casamento, começo de namoro, fim de namoro, time ganhou, time perdeu, time jogou, churrasco e cerveja, sempre muita. Isso em dias úteis. Nos inúteis, dos feriados e fins de semana, não carecia desculpa, pois já eram para tomar todas mesmo.

Não que o amigo não trabalhasse, longe disso, trabalhava e muito. Compromissado e bom de serviço. Mas venceu horário, pronto, disposto a tudo. Outra característica fantástica sua era o vício da leitura. De bula de remédio, revista velha, jornais de ontem aos grandes clássicos, nada passava batido aos seus olhos. Minto, ao seu olho. Só tinha uma vista. Da outra não enxergava. Curiosamente só descobriram sua cegueira aos 11 anos de idade. Acho que já falei disso. Vou conferir. Se não, depois conto.

Este saudável hábito de leitura, que aos poucos vem se perdendo, como milhões de pessoas, por conta do maldito smartphone e seus aplicativos, em particular o WhatsApp, não tirou sua rapidez de pensamento e outra mania: palavras cruzadas. Do nível mais alto àquelas mais simples detona todas em tempo ligeiro. Bom, isso quando não pegava uma, começada por outra pessoa, sem o trato com a coisa. Ao ponto. Não o churrasco, mas o contar.

Certa noite, acordou com dor lancinante no dedão do pé, irradiava para tornozelo. Tentou levantar-se. Desastre. Despencou sentado na cama. Não conseguia encostar o pé no chão. Apavorado, ligou para o irmão pedindo ajuda.

— Acode aqui mano. Acho que quebrei o pé dormindo.

— Como assim mano! Ninguém quebra pé dormindo!

— Não sei como, devo ter dado um chute na parede sonhando. Corre que o trem tá feio.
Urgência médica, lá se foi, apoiado e saltitando que nem saci. No hospital, depois da habitual longa espera, foi finalmente atendido por médico sonolento de longo plantão. Examinou, mexeu daqui, cutucou dali e ele, aos berros, a cada virada. Radiografia para tirar a teima do amigo, pois o diagnóstico estava fechado. Nada de fratura.

— Olha doutor, se não é chute na parede, o que é que eu tenho? Perguntou, já com água no olho.
— Gota meu filho. Seu problema é da gota serena.

— Você bebe?

— Socialmente, mas aceito um golinho só para acompanhar.

— Gosta de carne?

— Vixe!

Passou remédio e dieta. O remédio tomou. Quanto à dieta, filosofou:

Todo ser humano tem que escolher: fazer dieta ou ser feliz.

Ele, escolheu ser feliz. Não abriu mão de sua cerveja e churrasco. Vai ser feliz lá num rodízio!

Leia super rapidinho em um fôlego só:
Esta prosa não é recomendada em casos de suspeita de dengue e muito menos para menores de 18 anos.






Jornal Correio em 2 de outubro de 2016