segunda-feira, outubro 10

Trem bom




Imagem coletada na web

Esse tempo está mais para trem bala do que para maria-fumaça. Ligeiro que só, às vezes, não permite nem paisagem. Da janela apenas mistura de cores, riscos azuis, prováveis rios e córregos da infância. Hora ou outra um rosto. Quem será meus Deus? Puxo da memória. A viagem continua em compasso de xote, nossa polca patropi. Não, o ritmo é zumba, de tão ligeiro. Havia um tempo de toada de maria-fumaça, um tango, um bolero manso. Um arrastar gostoso das horas. Ficou longe. “Maria-fumaça não canta mais/ Para moças, flores, janelas e quintais”, cantou Bituca.

Pois sim, lá se vão quase dois anos a morar só. Totalmente adaptado a nova vida. Já não ocorrem os desperdícios de tudo. Não acontece mais o horror de ter que jogar coisas fora por estragarem ou por validade perdida. Achei o equilíbrio. Já assovio sem razão, canto no banheiro, dou risada sozinho. Outro dia pela manhã acordei com um zumbido forte. Será o quê? Pensei. Pernilongos, isso mesmo. Os danados estavam em turma. Parecia festa e o cardápio certamente seria eu. O “seria” é que, já sabendo dos visitantes noturnos (diurnos também para dar com pau), durmo de cortinado. Isto mesmo. Devo ter sangue tipo gourmet, pelo menos para o paladar voraz dos meus alados visitantes.

Se eu estiver no Mineirão lotado até a tampa, em uma final onde jogam Atlético Mineiro, meu Galo de coração, contra o Cruzeiro, seguramente aparecerá um pernilongo. Um só, desavisado, vindo da lagoa da Pampulha, trazido pelo vento direto para o gramado. Ele vai se recompor, aprumar as asas, dar uma olhada na massa alvinegra, obviamente maioria no estádio, e com seu olhar culicídeo vai me achar. Bem lá no meio, com a nossa tradicional charanga, há “mil anos”, entra na arquibancada tocando “Mamãe eu quero” e pimba! Logo estarei coçando. Ele me acha. Acha mesmo!

Certo dia, frente àquela infantaria pernilongal, saquei de minha já famosa raquete eletrônica e, depois de vários sets de luta, estalos e cheiro de mosquito queimado, postei-me no centro do campo de batalha. Centenas de corpos alados se espalhavam pelo chão. Senti-me o próprio Leônidas durante a Batalha de Termópilas. Não lembra? Tem o filme por nome “300: Rise of an Empire”.

Aquela batalha fora minha, mas a guerra, só rindo, nasceu perdida. Enquanto nós humanos continuarmos a criar esses bichos, não tem jeito, pois, para todos eles, fornecemos em fartura casa, comida e roupa lavada. Quem não quer tamanho aconchego? Leila Diniz: — “Cafuné na cabeça, malandro, eu quero até de macaco”.

O mundo é, e será sempre, dos sôfregos pequeninos.

A vida ligeira que só, me põe a pensar na maria-fumaça e nas estações que à frente estão. Não carece perder tempo em contar quantas ainda temos, mas a velocidade nos trilhos poderia bem reduzir para trote manso, deixando a paisagem passar sonolenta e bela. Um cochilo, vento de serra e perfume de terra molhada. Cada um aperta o maquinista de sua via como quer. Prefiro e assim. Sigo querendo amigo, que seja desse jeito. Mesmo com fornalha em ouro brasa, o resfolegar poderia ser manso, o ranger musical e a viagem bem demorada.






Jornal Correio em 09 de outubro de 2016

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