segunda-feira, junho 27

Clima de sonhos



“Você já foi a Bahia? Não? Então, vá”. Pois então, não é que  Caymmi, propositalmente ou não, vai se lá saber, vendeu e muito bem os encantos das terras que serviram como porta de entrada para os lusitanos nos descobrirem, ora pois.

Contam que Pedro, o Cabral, procurando as Índias se perdeu na confusão de placas de sinalização espalhadas mar adentro, errou o caminho e veio parar em nossas costas. Talvez o vento tenha virado a placa indicativa “Índia a cinco mil quilômetros, reduza a velocidade, cuidado com o quebra-mar, respeite a sinalização e boas descobertas pá”.

Se foi assim sei não, mas entre tempestades, calmarias e muito tédio, aqui chegaram. Missas e tais, depois só gandaia. Belas índias, a rodo, foram penas para todo lado. Assim foi e assim permaneceu, a fama pelo menos. Até os dias de hoje, a Bahia é uma festa, um fim de semana que começa na passagem de ano e termina no Natal. Imagine se os portugueses tivessem chegado pelo sul e no inverno? Das duas uma, ou teriam dado meia volta, tipo: — Ô, Vaz escreva nada não, estamos a voltar, isso cá não tem nada de Índia, vamos pegar o primeiro retorno, erramos em algum trevo.

Mas não é sobre isso que quero falar. A pródiga e maravilhosa Bahia fica para outro dia, tenho muito de lá a contar.

Há tempos não sinto tanto frio aqui em Uberlândia. Fico encarapinhado, que nem passarinho. Falta gosto até de conversar. Quero mesmo é cama. Como anda a escurecer muito cedo, chego de minha corrida diária e tomo um belo banho, inicialmente, frio. Ô vontade de gritar um belo e alto palavrão quando a água bate nas costas. Passo a morno e encerro em “departure” galope.

Contudo, mudei muito o pensamento sobre frio em junho. Quanto à chuva, que tanto me apaixona em época qualquer, descobri que é chuva verde criada longe, em região de mistérios e belezas escondidas, a espera de curioso encontrar lugar de Matinta Perera com seu assobio. Da Boiúna, a cobra grande, do Piripirioca, aquele cuja alma passeia pelo céu, entre as estrelas quando canta. Terra do Uirapuru e seu canto belíssimo, a chamar sua paixão destruída. Do boto e suas seduções. Pois conto, a Amazônia chove em mim. Mesmo trazendo frio, ligo não. Sinto cheiro da mata quando chove. Forte, doce superlativo, como tudo por lá eu vi. Conheci o paraíso.

Vem a pergunta: você já foi a Amazônia? Não? Então, saiba que ela vem até você dezenas de vezes ao ano. Não acredita, pois saiba, outra vez afirmo, que a Amazônia chove em mim e em você constantemente. Os climatologistas sempre nos dão esta maravilhosa notícia.

“São os ventos úmidos vindos da Amazônia, que trazem chuva para o Sudeste do País, em contato com as frentes frias secas que vêm do Sul. A tendência desse encontro é ocasionar queda na temperatura”. Palavras do xará William César Borges, do Instituto de Climatologia da UFU, outro dia.

As frentes frias vêm do Sul. Sim, misturo a mística floresta com belos tangos da Argentina, que tentam gelar minhas noites, mas são sempre bem aquecidas por belos vinhos de Mendonza.









Jornal Correio em 26 de junho de 2016

segunda-feira, junho 20

Dedo meu



Sou um entusiasta por novas tecnologias, apesar de preferir mato, cachoeiras e bichos a gentes. Mesmo me deixando ficar horas deitado olhando estrelas, a espera de que alguém ou alguma coisa venha me buscar lá dos confins do universo, como no niilista e gnóstico filme “Matadouro 5”, que acredito quase ninguém viu, “estou solto no tempo”. As possibilidades que as modernidades nos mostram todos os dias, também me encantam. Outro dia, brincando com um iPhone, demos boas gargalhadas ao mantermos um diálogo sério com esse aparelho. No caso ela, pois a voz era feminina. Ponto para a língua inglesa, já que, neste caso, poderíamos usar um simples “it”. Nada de “he” ou “she”.

Disca para fulando, como está o tempo no Nepal, qual a cor de Rocinante, montaria do cavaleiro da triste figura? Perguntas feitas até chegarmos a outras do tipo “pessoais”: você é feia? Você é burra? Ela, a voz, apela, fica uma onça e ainda te dá respostas malcriadas. É cômico.

Respostas a perguntas mais “complexas” são hilárias. Faça o teste e passe bons momentos.
Agora, estranho mesmo são os tiques que desenvolvemos com o uso constante destas máquinas. Permitam-me sussurrar para que meu celular não escute. Chamá-lo de máquina, aparelho, autômato ou coisa que o valha, para ele pode ser ofensa.

Acho que todos, frutos do mundo do copiar/colar já copiaram algum texto ou mensagem da tela de um celular. Aquele ato de segurar o dedo, geralmente, o indicador sobre uma palavra, faz aparecer aquele sinalzinho que escorregamos para marcar em azul o que queremos reproduzir. Até, aí, normal, estranho é o que vem depois. Quando clicamos em “copiar”, vem a sensação de que o texto está grudado em nosso dedo. E o medo de encostar em qualquer coisa e apagar ou transcrever o copiado na pele, parede, panela ou copo?

A impressão que dá é que, se coçar a orelha, prega lá o texto. E pode ter certeza, uma coceira vai aparecer em algum ponto para seu pânico. E lá se vai, com dedo meio levantado para não gastar o copiado. No meu caso, é pior, pois só uso um dedo para escrever no celular. Nunca consegui destreza de gente que escreve com velocidade taquigráfica.

Meu indicador já está criando calo. Logo terei que mudar de dedo ou mão, pois ele já começa a dar sinais de exaustão. Eventualmente crônicas inteiras são assim digitadas. Isto acontece muito quando meu caderninho fica longe ou em situações especiais, como em avião e sala de espera por exemplo. Assim, a visão está cada vez pior e o dedo nem se fala.

Sou catador de milho naquele miniteclado que, para piorar, tem a mania de mudar as palavras por conta e risco. Um desaforo sem tamanho. Imagine se fosse real. Fazer cola seria manha. Todos poderiam tirar o relógio, passar por revista geral para ver se tem papelzinho ou escrito na perna. Mas e o dedo?
É, mas os caras são espertos. Antes de entrar em sala de aula, diriam:
— Bota o dedo aqui na folha branca! Pronto, mais uma técnica de cola frustrada.

Agora, posso entender bem o significado do termo “Não aponta esse dedo para mim!”. Viva a tecnologia. Pode não fazer bem, mas que a gente se diverte, isto é fato.







Em Jornal Correio 19 de junho de 2016
e
Jornal Voz Ativa - Ouro Preto Minas Gerais

quarta-feira, junho 8

Constatação

"A dificuldade humana de gostar de gatos está diretamente ligada
 a incapacidade de amar sem dominar."
 
 
 

Desabafo

(…) Amanhã não gosta de ver ninguém bem. Hoje é que é o dia do presente (…). Impossível fugir a essa dura realidade. Neste momento todos os bares estão repletos de homens vazios (…)

Dia da criação – Vinícius de Moraes


Boas coisas, boas gentes, amores, parecem que duram pouco ou não foram feitos para mim, não é meu destino. Sina. Tive longa paixão, mas só eu acreditava nela. Diziam impossível paixão longeva. Pois tinha. Sou um desastre no relacionar, gênio ruim, estopim curto, um humor que sobe e desce. Não há quem aguente. Mudei muito. As perdas nos mudam. Pena que quem se feriu não acredita. Dou toda razão. Fui custoso. Fui, no sozinho pensar, refazendo meu pesar. Meu jeito de carinhar e gostar.

Tenho muito que provar, mas também não tenho pressa. De meu gato muito falei. Jurei falar mais não, nem que fosse por prazo. Mas hoje carece, me digam se não. Como um bicho pode ensinar. Confesso que conversei muito com ele. Bicho confidente e, gato, desconfiado que só, respondia com olhares/miados. Cumplicidade consolidada. Dois viventes livres e aventureiros.

Veio o desgosto. Morar em condomínio, prédio, casa que seja, pois ter vizinho é um exercício de paciência e tolerância. Criaram caso com meu gato. Queixa me chegou. Sou mineiro das alterosas e, como tal, sistemático. Pago minhas contas e nunca atrasei dia sequer. Não tenho dívidas, tenho compromissos e estes honro no dia e hora. Devo ninguém. Quieto mas fácil de fazer amizade sincera. Gosto de mentira nem de falsidade não. Sempre me mantive arredio e na minha. Cumprimento com sorriso e poucos lá com um bom dia/tarde/noite de voz. Ouço música baixa para não incomodar. Tento permanecer invisível.

Pois não é que desalmado, mal-amado, infeliz, se queixou do simples existir de meu gato!? Gato do bem, adorado pela criançada e vários adultos. Socializado ao extremo. Conto minha rotina nesse minúsculo condomínio de casas. Convivo com cachorro latindo dia todo, barulho de música alta em festa. Nunca reclamei, nem vou. Pois todos têm um dia ou outro de ligar o foda-se.

Ser feliz não é doença. Pois assim acharam. Meu gato, tranquilo e do seu jeito conquistou muitos. As crianças principalmente e adultos do bem, felizes. Tem gente que não merece o mundo, devia pedir desculpas pelo espaço que ocupa. Para a coisa não ficar feia, pois repito, estopim é curto, e por mais que exercite tolerância fico preocupado que hora me falte, principalmente frente a tanta mesquinhez de vida, levei meu gato para uma pessoa muito especial. Coração enorme, apaixonada com a vida e com o viver. Casa de verdade, nada de meias paredes sufocantes/confessionárias. Quintal belo, florido e arborizado. A morada mais linda do bairro. Sempre disse isto. Gato está lá muito bem, obrigado. Cercado de gente feliz, almas claras, de bem com a vida.

Fico pouco por essas bandas, queria viver entre pessoas resolvidas. Ao coitado que queixou, fique em paz, mesmo que esta jamais o alcance. O que não duvido. A vida é, mesmo que não acreditemos em alguns momentos, justa. Não o quero mal, o quero longe. Tento e sou paciente. Mas execraram meu gato, uma companhia e amizade a alegrar solidão, e eu, quero mais é ir embora. Se souber de cantinho, meia água com plantas e gente do bem, me avise via e-mail.


"And in the end the love you take is equal to the love you make"
The Beatles







Jornal Correio - Opinião em 08 de junho de 2016



".

segunda-feira, junho 6

Recuerdos: Beijo





Sentado no canto mais escuro do bar, coçava a barba por fazer. Daquele ponto podia observar todo o ambiente. O entre e sai das gentes. O apressado engolindo cafezinho, que pelo cheiro que emanava da cafeteira prateada mergulhada em cuba d’água sempre aquecida devia ser esquentado, feito há dias talvez.

Outro, a comer lambuzado pão com molho de almôndegas vindas de travessa onde ficavam a boiar em vermelho caldo na vitrina de salgados, como estranhos seres alienígenas que ainda não foram pescados. Ali também havia ovos cozidos de cascas azuis e vermelhas, pastéis ressecados, e claro, moscas, muitas moscas.

Do seu canto observava também uma parte da movimentada rua. A porta do bar, uma moldura. Enorme boca parecia tentar engolir carros e pessoas que ao seu alcance passavam. Um quadro em movimento, mutável, tristemente dinâmico, vazio. Cinza.

Fazia um calor insuportável. Abaixou os olhos para o seu copo de cerveja, estava quente. Com as costas da mão conferiu a temperatura da garrafa, sentiu a umidade do vidro suado, mas pressentiu que o que ainda lá restava também já não estava gelado, nem fresco.

Assim mesmo tornou a encher o copo, espuma branca e abundante tomou quase o copo inteiro, uma pequena cachoeira escorregou alva pela borda e derramou pela mesa de lata, virou amarelo líquido rapidamente. Com a ponta do dedo ensaiou um desenho sem sentido com a cerveja derramada. Um círculo, algumas letras, um rio e suas curvas.

Bateu a mão no bolso da camisa procurando o maço de cigarros. Mania, parara de fumar havia muito tempo. Tamborilou no encosto da cadeira do lado uma música que nem conhecia. Ansiedade.

Buscou com os olhos alguém conhecido.

— Mais uma cerveja, por favor, tem torresmo? - Ia ficar ali um bom tempo.

Procurou  guardanapo de papel rabiscado. Era o bilhete que havia recebido no dia anterior. Entregue por um menino vendedor de flores, aquelas rosas mumificadas embrulhadas em papel celofane.

— Moço, mandaram entregar. Baixou os olhos para a encomenda um segundo e quando outra vez os ergueu o pequeno mensageiro havia sumido, mágica, não tinha para onde ir tão rápido, estranho.

Além da caligrafia bonita, do perfume que não mais se podia sentir, o que mais encantava era o beijo de batom. Vermelho vivo. Um convite ao desejo. Prometia encontro naquela mesa, na proteção da tarde quando poucos ao bar se aventuravam. Não conhecia a dona daquela caprichosa mão e de tão perfeita boca. Sonhava.

As horas avançavam, o entra e sai aumentava, a moldura da porta adquiria tons escuros, faróis agora acesos cruzavam seu campo de visão. Ninguém. Com paciência sofrida, colou o bilhete no casco da última cerveja, o vermelho do batom escorreu papel abaixo em contato com água condensada. Observou a cena sem emoção especial. Quem sabe amanhã? A solidão ainda permite sonhos.







Jornal Correio 06 de Junho de 2016